Contos: A louca de Hamburgerberg
Katharina deu mais uma espiada no calendário. Desde que chegou ao mundo, não se demorou nos porquês. Viveu abstraída acompanhando sua sina. 18 anos e a data de chegada a esta idade, em 17 de dezembro de 1891, era irretornável. Sorriu, a vida, enfim, era suportável. Na sua leveza de lamentar o que quer que fosse, torcia a ponta do avental gorduroso, repassando a infância.
O vestido domingueiro, o culto luterano seguido pelo kerb, festa anual de Hamburgerberg .
Povoado sereno de poucas ruas dispersas, onde vivia com os pais e os seis irmãos. Tudo veio com a mesma rapidez com que seu olhar inquisidor cravou novamente no calendário. Lembrou dos festejos que subvertiam a ordem local. Podia então comer tudo que coubesse na barriga, rodopiar no cadenciado da bandinha até que vomitasse empanturrada de alegria. Era permitido, para quem quisesse, ser feliz uma vez por ano.
Naquele povoado, habitado por imigrantes alemães e seus descendentes , o tempo era ocupado pelo trabalho árduo, seguindo a risca os preceitos religiosos e a rígida moral que espreitava até mesmo o mais singelo sorriso. Suspirou, passou a mão no ventre e rememorou sua promessa - era o quinto e seria o último.
Como das outras vezes, se automutilou.
Com o mesmo ferro de ponta curva, arrancou sem dó de si, nem dele, o minúsculo feto. Com as mãos ensanguentadas ergueu-o , oferecendo-o ao vazio do infinito. Não chorou, nem disse palavra. Seguiu o dia e desta vez, não temeu a noite, como acontecia desde sempre. A obstinação vinha da lembrança agora etérea, de carrancas indiferentes, de bocas disformes e caladas, dos olhos descomunais que nada viam. Todos sabiam... Até o pastor da Igreja, cuja conivência silenciosa, colocou a pá de cal que faltava para enterrar de vez qualquer centelha de fé.
Deles todos, nada teve, sequer desprezo. Desprezar colocaria perigosamente em risco o providencial e disfarçado notório.
Depois de tantos anos rogando por um dia que nunca acabasse, esperou ansiosamente o anoitecer.
Quando o pai entrou no quarto e arriou as calças como de costume, ela sacou de uma faca e numa só lapada cortou os genitais do velho Otto. Com a gritaria, a casa toda acordou. Encontraram Katharina sentada na cama segurando um prato, saboreando tranquilamente o pênis do pai. O sangue que lambuzava a boca, emprestava um sorriso retorcido de palhaço, sob a luz bruxuleante de um toco de vela.
Otto por pouco não morreu.Tratado com unguentos, rodeado pela dedicação e a cumplicidade da família e dos vizinhos, sobreviveu. Recuperado, seguiu como se entre suas pernas nada lhe faltasse. A mesma ausência das palavras não articuladas feitas para aqueles que não querem ouvir. Um acordo mudo trancafiou Katharina no quarto do sótão até sua morte, 20 anos depois. Enquanto viveu, uivou para lua todas as noites com a mesma delicadeza de quem canta uma canção de ninar.
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Porto Velho, RO – 29/06/2017
Vinicius Canova



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