Contos: A visita de Vera Fischer¹
Bem que a mulher e os filhos tentavam. Mas ele não dava conversa. Na hora da novela, tinha que ser silêncio sepulcral. Nenhum telefone podia tocar, nem o cachorro podia latir. Não respondia, simplesmente, se fosse chamado. Não bebia, apenas fumava como um doido, duas carteiras e meia por dia, mas não pulava a cerca, nunca tinha procurado outra mulher em todos os anos de um casamento frio, mas perene.
O único defeito era aquele.
Quando aparecia a primeira vinheta, parece que ele entrava em transe. Estava num outro planeta, distante, vagando com seus pensamentos pelas estrelas. Contava os minutos para que ela aparecesse. Sofria com suas lágrimas, dava sorrisos sinceros quando ela estava feliz. Ficava furioso com os namorados que a destratavam e queria ser amigo dos seus amigos. Não adiantava, para o Tavares, só havia uma pessoa especial no mundo.
E ela estava lá, todas as noites, depois do jornal, antes do show, na tela da TV que ele comprara em suaves prestações, pagando religiosamente, para não correr o risco de um dia, como acontecera com seu vizinho, acabar vendo chegar o homem com um papel na mão e uma ordem de recolher a preciosa mercadoria, com cinco prestações atrasadas.
Desde jovem, fora introspectivo. Vê-lo falar alto era quase assistir a um eclipse total da Lua. Falava baixinho, parecia ter medo de ser notado. Passava horas a fio na mesa do escritório de cabeça baixa, trabalhando duro, anotando números, fazendo contas, entregando tudo na hora certa para o chefe ranzinza. Foi lá mesmo que conheceu a Terezinha, única com quem trocava olhares. Ele, magro e alto, óculos de fundo de garrafa, nunca pensara que teria uma namorada. Ele a cativou pelo silêncio, parece incrível. Ela também, tímida, encontrou sua cara metade.
Casaram-se e o silêncio foi o pano de fundo para uma relação amorfa, que parecia não ter sentimentos. Os dois eram muito parecidos. Os dois filhos nasceram também sem palavras, porque na transa, além de um ou outro ruído que escapava, ambos procuravam não fazer barulho. Afinal, não queriam que ninguém soubesse dos seus sentimentos e dos seus poucos prazeres. Tavares foi envelhecendo, vivendo uma vida sem emoção e sem sustos. Nada mais do que o comum, o dois mais dois são quatro, nenhum risco. Estava apenas vivendo, uma vidinha fodida, mas feita do jeito que ele gostava. Quase não tinham amigos, quase não saiam.
A televisão ficou sendo o único meio de mantinha a relação sem sabor e sem sal que mantinham. Era preto e branco no início, mas ele economizou cada tostão para comprar uma das primeiras a cores. Tinha encontrado um meio de abandonar a mesmice e viver o mundo irreal, porque a realidade era insossa e desprovida de praticamente qualquer emoção.
Foi numa velha revista Manchete, que ficara lendo na antessala do dentista, enquanto esperava sua vez para tratar um canal e uma dor que o acompanhavam há dias, que ele a conheceu. Foi amor à primeira vista. A foto em preto e branco mostrava uma jovem loira com a coroa de miss na cabeça. Ficou encantado. Esboçou um sorriso especial, que raramente dera em sua vida de pasma segurança e, pela primeira vez, tivera vontade de fazer uma coisa doida, diferente: recortar a foto da beldade, colocá-la no bolso, levar para casa, esconder-se com ela no banheiro e encher a fotografia de beijos apaixonados. Ficou um pouco vermelho só de pensar na peraltice que apenas sonhara e que, certamente, jamais tornaria realidade.
Porque se o fizesse, estaria correndo risco e poderia sentir-se impotente, como sempre se sentira vida afora, para lidar com a situação que fugia da mesmice da realidade. A partir do encontro da única verdadeira paixão, não se sentia mais, como sempre sentira, apenas uma espécie de poeira perdida neste universo de gente falante, bonita, sem medo de nada, que parecia extraterrestre, se comparada com a sua timidez, seus medos, sua angústia de ter que sair da porta para fora todos os dias, apenas para trabalhar e, do trabalho, voltar correndo, imaginando-se quase transparente, para que as pessoas passassem através dele e ele não as atrapalhasse.
Começou a gostar da ideia de ter um outro lado, claro que só ele saberia, jamais contaria a ninguém, porque alguém poderia se ofender, poderia ser um mau exemplo, nunca, jamais, conversaria sobre o assunto com alguém da família e, mesmo que tivesse algum amigo, um confidente, nada diria, porque esse tipo de coisa não se conte a ninguém, guarda-se como um se houvesse um cofre dentro da alma, com uma combinação que jamais daria acesso a qualquer outro ser, só a ele. E, é claro, nunca contaria a ela mesmo que a visse, mesmo que ela, por algum milagre que pudesse acontecer, alguma vez o encontrasse, até porque ele era quase transparente, ela iria passar através dele e nem o notaria, então não tinha que falar, nada tinha a contar.
Guardaria só para ele esse segredo, que para algum outro qualquer, analisando seus pensamentos, poderia passar a ideia de que era apenas uma quase infantilidade, mas, para ele, em sua complexa forma de tentar tornar-se quase invisível, a excentricidade poderia o colocar no rol dos humanos comuns, coisa que ele nunca fora, porque os humanos tinham sentimentos, envolviam-se, gargalhavam, vertiam lágrimas, eram cheios de sentimentos e sentimentalismos, mas ele não, não tinha nada dessas frescuras. Então, quando sentiu aquela quentura subindo pelo seu corpo, quando viu a foto, ainda em preto e branco, quase desbotada, imaginou-se ali, ao lado dela, colocando a coroa na cabeça, trocando sorrisos e amabilidades. Envergonhou-se ao pensar que, se ela permitisse, passaria a mão por suas longas pernas e, pior que tudo, em plena recepção do dentista que o esperava para maltratá-lo com todas aquelas brocas e anestesias, teve uma ereção, depois de muitos anos.
Chegava em casa quase esbaforido, porque às vezes perdera o ônibus, porque no meio do caminho algum pedinte o tinha parado, antes de entrar no portão de casa, para esmolar alguns centavos que faltavam para o pão, ou porque os filhos dos vizinhos, fazendo algazarra, pediam que ele saísse do meio do campo improvisado de futebol, no meio da rua sem asfalto. Parecia que sempre havia alguém a atrapalhar seus planos. Entrava quase correndo, tirava o paletó meio puído, jogava na cadeira, mal cumprimentava quem estava por lá. Dar um beijo na chegada, na mulher que também o considerava quase um invisível, nem pensar.
Em pouco minutos, que lhe pareciam por vezes um passo de eternidade, estava pronto para ela. E, quando a tela se enchia com sua beleza, agora colorida, ele sentia-se como se tivesse saído do corpo magro e maltratado e, lá em seus pensamentos, como se fosse um jovem garanhão, pronto para atacar sua presa, a linda presa, que o cativara e o ajudara e sair do mundo cinza em que vivia e o levava para a terra da azáfama, da algazarra, da farra, dos beijos quentes, do sexo selvagem e aquele sonho sonhado sim, deveria ser sua verdadeira existência.
Ficava quase em estado de fúria quando, no final do capítulo, sua amada passara sofrendo, às lágrimas, maltratada pelo homem que, ali, naquela história que o fascinava, que o tornara amigo íntimo dela, embora ela não o soubesse, mas ele sabia e era isso que importava, quando o namorado, o marido ou o amante da história não davam a ela tudo de bom que ela merecia. Durante quase uma hora, tirando os comerciais, que ele praticamente não via, porque era o tempo que tinha para pensar como era estava linda, como tinha bom gosto em escolher suas roupas, como falava tão bem, era inteligente, diferenciada, linda e culta, corpo escultural e ainda por cima dava sempre um show tanto na hora das cenas dramáticas como nas horas em que aparecia o seu bom humor.
Não aceitava que ela decorara um texto, mas que já saíra de casa com tudo pensando, no que iria dizer, na hora em que iria chorar, quando cruzaria as pernas, quando sorriria. Era a mulher perfeita, em todos os sentidos.
Torcera tanto por ela, embora não se mexesse um músculo aparentemente, para que ninguém da casa notasse sua paixão, que acabava quase enlanguescido, de vez em quando uma gota de suor caía da testa, o cansaço só não podia transparecer, afinal de contas aquela gente que o cercava na casa onde morava, jamais saberia o que ela significava para ele. Era o segredo do seu alterego, que ele cultivava para conflitar com a vidinha sem sal e, como água, incolor, insalubre e inodora, que levava, no mundo real.
Quando o capítulo terminava, o mundo irreal também se ia. Nada mais o interessava. Nem os shows, nem os programas esportivos, nem os debates vazios e sem graça, nada chamava mais sua atenção. Esvaziava o cinzeiro, atulhado de baganas e cinzas, fumava um e já acendia outro e só se sentia perdido quando chegava o domingo, quando ela sumiu da sua TV e do seu mundo, para só voltar na segunda, que todos detestam, mas ele amava, porque podia matar as saudades.
Quando a novela terminava e a próxima, como castigo pessoal que lhe davam, não trazia consigo sua amada, ele ficava na cama, como se estado catatônico, ignorando os diálogos, fazendo de conta que olhava para as cenas, mas, na verdade, estava, na cabeça, rememorando tudo o que ela fizera naquela história que acabara e que a exilara às vezes por meses seguidos, transformando sua vida num inferno. Só a via em capas de revistas nas bancas de jornais, olhava com olhar triste, mas azougado, sempre inquieto, olhando no espelho aquele rosto que não era dele, porque ele rejuvenescera, era outro, por centro, desde que tinha descoberto o verdadeiro amor.
Foi um verdadeiro azar. Poucos capítulos da nova novela das oito tinham ido ao ar. Uma história meio idiota, cheia de invencionices, mas, a ele, não importava, porque ela estava lá, ela mesmo, voltara ao seu convívio, depois de tê-lo castigado com sua ausência durante tanto tempo. Foi lá pelo décimo cigarro, exatamente quando ela abria seu sorriso, parecendo direcionando só a ele, que apareceu aquela dor diferente. Primeiro, uma espécie de pontada no lado direito da cabeça. Depois, uma quase explosão, algo que parecia um tiro de espingarda à queima roupa. Foi só.
No hospital, tubos, seringas, correria dos médicos. O derrame tinha sido destruidor. Era um milagre que ele ainda estivesse vivo. Duraria pouco, porque mesmo com o socorro tendo chegado com rapidez e a distância até o hospital não fosse grande, desde a sua casa, não havia mais o que fazer. A boca torta, a perda total da visão, a falta de movimentos nos braços e nas pernas resumiam os estragos do AVC. Todos o tinham avisado. Cigarro, vida sedentária, decisão de nunca discutir, nunca gritar, guardar tudo para si mesmo, não conversar, não ter momentos de alegria, viver num mundo só seu, um dia poderia lhe custar caro. Ele cagou e andou para os avisos e continuou ignorando a cena de quase velório que o cercava.
Foi assim, nesse cenário que, fervilhava de médicos, enfermeiras, parentes, correria e lágrimas de quem sentiria, certamente, a falta dele, que ela entrou para vê-lo.
Estava com aquele vestido branco que era tanto adorava, qual o nome da novela mesmo? Ah!, não interessa, o importante é que ela entrou no quarto, caminhou, como se estivesse desfilando só para ele, deu-lhe aquele sorriso que tanto amava. Pegou levemente na sua mão, apertou um pouco, sorriu de novo. Ele tentava chamar a atenção de todos. Era ela, Vera Fischer estava lá, só para vê-lo e ninguém dava atenção a ela, só queriam saber de soro, de gritos e correria para um lado e outro, como se isso fosse resolver alguma coisa.
Abanou da porta, quando saía. Foi a última vez que a viu. Mas foi como se estivesse ao lado dele a vida inteira. Ela realizara seu sonho, tinha ido vê-lo, apertara sua mão, dera-lhe o sorriso pelo qual ele esperara a vida toda. Ah, Verinha, minha miss, rainha das atrizes, imperatriz das belezas femininas deste mundo, ah!, que bom que você esteve ao meu lado. Nunca mais vou esquecer esse momento, nunca mais...
___
Contato: ibanezpvh@gmail.com
¹Retirado do livro de contos do autor, ainda não batizado, a ser publicado.
_________________________________________
Sobre o Sonetando:
Blog voltado à publicação de textos, especialmente poesias, crônicas e contos. Espaço aberto a autores até então anônimos; amadores; profissionais e até famosos.
_________________________________________
Tenha seu texto publicado:
Encaminhe seus escritos para os endereços eletrônicos envietextos@gmail.com / viniciuscanova89@gmail.com.
Contribua com este universo de leituras!
Não esqueça de inserir informações como nome completo, pseudônimo (caso use), profissão, data de nascimento, naturalidade e local atual de moradia.
Obs.. Encaminhe também pelo menos uma imagem em alta resolução que melhor represente seu escrito para fins de ilustração.
Grande abraço e vamos ler e escrever, pessoal!
Porto Velho, RO – 29/06/2017
Vinicius Canova



Comentários
Postar um comentário