Conto: Velório etílico


*Vinicius Canova


Era manhã de sábado e o remelento Antônio ainda com bafo de vodca barata e resquícios gástricos de um lanche morte lenta havia acabado de acordar de uma bebedeira daquelas homéricas de revirar e corroer esôfago. Como de costume, aprontou-se para o serviço, conquanto estivesse atrasadíssimo.

— Puta que o pariu, de novo! — exclamou entre arrotos sequenciais que saíam para dentro após bisbilhotar de relance o relógio.

Apanhou a primeira calça surrada que apareceu, usou a camiseta do dia anterior que exalava cheiro nauseante de álcool e recolheu as chaves do automóvel após minutos intermináveis de busca. Quando colocou os pés para fora, uma ligação o interrompeu.

— Tonho... — disse o amigo Tobias, reticente.

— Diga lá, irmão. Tô atrasado pra cacete... Vai falando que eu tô ouvindo.

— Velho, o Alípio morreu – contou o colega com a voz embargada, como se ele próprio, na condição de portador da notícia, não tivesse se habituado ao fato antes de repassá-lo.

Um silêncio sepulcral tomou conta das linhas telefônicas que se cruzavam naquele momento: não havia o que dizer.

— Vamos ao IML agora mesmo! – encerrou a conversa o moço atrasado sessenta segundos depois.

Claro, os detalhes foram devidamente expostos e Tobias deixara Antônio ciente de todas as minúcias da tragédia anunciada.

Alípio era um porra louca, uma verdadeira criança presa num corpo de adulto com raros lampejos de sapiência etílica, por incrível que pareça. O morto tinha amigos, claro. Inúmeros. Aliás, eles brotavam aos montes na funerária escolhida pela família para velar o corpo.

Antes de morrer, muitos desses amigos que o enxergavam como um verdadeiro bobo da corte passavam a vida a incentivá-lo. Enchiam o cu de cachaça, assim como Antônio e Tobias, mas diferente destes, verdadeiros cagões no dia a dia, acreditavam na imortalidade como se suas fotos ilustrassem o verbete no Aurélio.

A morte do palhaço da turma colocou ponto final na crença.

Tonho tinha apreço genuíno pelo falecido, ainda que não convivesse diariamente como os demais chegados; na prática, era uma amizade à distância, que permitia cotidianos apartados e, raramente, conversas filosóficas e pessoais a dois. Provavelmente Antônio conhecera Alípio muito melhor que seus parceiros de manguaça cujo contato só existia com a faceta mais remota de sua personalidade.

Quando bebia, e bebia com frequência doentia, não havia um confrade disposto a retirar as chaves do volante. De fato, os rapazotes nutriam a expectativa de vê-lo sem as rédeas morais que a consciência inflige aos humanos sóbrios tanto na linguagem figurada quanto literalmente. Queriam, fervorosamente, saber se havia limite que pudesse frear o amigo frequentemente tresloucado. Descobriram, da pior maneira, que sim: o fim da existência.

Depois da passagem pelo IML, já no velório, região periférica do lugarejo, a galera se amontoava para ver o desfalecido. Coincidentemente, urubus sobrevoavam a entrada do prédio causando arrepios nos visitantes e tornando o ambiente ainda mais bucólico.

De longe, Antônio elucubrava maneiras de chegar à mãe de Alípio, uma verdadeira fortaleza em forma de gente. Até ali, não havia derramado uma lágrima sequer.

Em outra cidade o pai, por outro lado, estava inconsolável. Três dias antes do fatídico havia dado o veículo pivô do desfecho de seu rebento que, embora não fosse o mais inteligente – nem o mais esforçado – entre os filhos, era o mais amado. As notícias chegavam em forma de burburinho, cochichos repassados tal qual brincadeira do telefone sem fio.

— Disseram que ele ficou louco, Sarah – murmurava uma adolescente ao pé do ouvido da amiga jurando falar baixo.

Reflexivo de olhar inquisidor, Antônio estava longe daquela sala funérea a se alimentar de pensamentos; flashes de sua convivência com Alípio passavam aos montes e de forma desordenada em sua cabeça. Não havia nada de autocrítica no sujeito, mas era expert em bater o malhete após analisar a conduta dos outros.

“Gente mesquinha, ridícula. Essas pessoas mataram Alípio, não há um inocente aqui. Bêbados, imundos, irresponsáveis! Aos quintos dos infernos todos vocês”, raciocinara consigo.

Quando Tonho finalmente tomou coragem e rumou em direção à mãe do amigo, fora interrompido por movimento brusco desta que, ao erguer-se da cadeira onde se mantinha introspectiva até então, elevou a voz ao coletivo:

 — Meninos, escutem aqui!

Por alguns minutos, então, os restos mortais do companheiro deixaram de ser a atração principal do evento passando o protagonismo, integralmente, à genitora.

— Conheço muitos aqui. Outros não faço a mínima ideia de quem sejam, mas não importa. Estou feliz que todos estejam aqui – disse.

— É bem verdade que Alípio era um menino muito querido. Nós o amamos mais que qualquer coisa em nossas vidas. Agora está nas mãos de Deus e, a partir deste momento, passará a prestar contas com Ele e só. Não há mais espaço aqui para julgamentos – continuou.

“Há sim! Seu filho era desajuizado. Se tivesse personalidade não teria sido conduzido a esse fim. Morreu de idiota, me fez perder o trabalho, sabe lá Deus que tipo de comida de rabo vou levar. Resumindo, dá trabalho até depois de morto o imprestável!”.

Pela primeira vez depois de horas de velório a mãe, indestrutível até aquele momento, permitiu-se desabar. O choro copioso embargou a voz, mas, em vez de prejudicar a conclusão do discurso, reforçou a atenção que já estava completamente direcionada a ela.

— A morte do meu filho é um aviso para vocês, jovens. Que sirva de lição. Respeitem suas próprias vidas e evitem que as suas famílias passem pelo que estou passando – encerrou, sendo acolhida pelo caçula.

“Aviso o cacete! Todo mundo é retardado agora?”.

José, o beberrão-mor, maior incentivador das estripulias de Alípio, não perdeu tempo: postou-se diante da mulher entristecida, cabisbaixo, esmorecido, derrotado e, antes que pudesse dizer qualquer mentira, fora surpreendido por um abraço de supetão patrocinado pela mãe desconsolada.

 — Não precisa dizer nada – disse a Zé, engolindo o rescaldo do choro.

“Esse filho da puta ainda tem coragem de chegar perto da mãe do cara, velho? É muito cara de pau um cidadão desses... Poderia ter tirado as chaves do carro, dado umas porradas em Alípio, aquietado o facho dele. Não fez merda nenhuma, deixou o arrombado se foder no meio fio. Por que não tirou a chave do carro, gordo desgraçado?”.

O bonachão não se aguentou e foi embora aos prantos, carregando a vergonha traduzida num insustentável sentimento de culpa que, corre à boca miúda, perdura até hoje e irá acompanhá-lo para sempre.

Os camaradas que vez ou outra o veem curvado vagando pelas ruas caíram na esparrela dos “sintomas da escoliose”; quem tem visão apurada, no entanto, jura de pés juntos enxergar enorme corvo pousado às costas obesas do rapaz corpulento a bicar intermitentemente sua nuca.

Era a vez de Antônio, ainda inquieto para falar alguma coisa sem saber exatamente o quê. Aproximou-se de novo, porém, resignado, desistiu. Sabia que não existia nada que pudesse ser dito a fim de aplacar a atmosfera lúgubre vivenciada pelos familiares.

— Vamos embora – rogou a Tobias.

No caminho de volta pra casa, com o dia de trabalho já perdido, Tobias avistou um pequeno posto de gasolina que abrigava tradicional conveniência da cidade. De longe, perceberam outros dissidentes do velório formando diversos grupos em mesas separadas falando sobre o mesmo assunto: a morte de Alípio, tema fresquíssimo – a pauta do momento.

— Vamos dar uma encostada aqui — sugeriu Antônio.

Duas long neck se tornaram quatro em poucos minutos.

— Está bom por hoje, Tonho. Amanhã é domingo, mas fiquei de ir à feira pra minha mãe, maior merda...

— Porra nenhuma, irmão. A gente quase não se vê. Fica aí comigo.

— Só mais duas, então.

— Fechado, cara!

Essas duas a mais se transformaram em dois engradados. No fim, vinte e quatro cervejas encerraram o dia dos amigos.

Tobias, em estado catatônico de embriaguez, desistiu lá pelas tantas.

— Chega, véio! Tô indo embora, Tonho. Se quiser, te deixo em casa.

— Vou ficar. Depois dou um jeito de voltar. Vê se aparece...

— Falou, veado!

No domingo Antônio acordou de novo com ressaca, desta vez por volta das 10h23. Havia oito chamadas não atendidas encaminhadas por Rodolfo, colega da faculdade.

— Que estranho... Mas que dia é hoje? – perguntou a si sem domínio da realidade.

Tonho retornou.

— Porra, cara. Quem é que liga pros outros na madrugada de um domingo pra encher o saco!? O que houve!?

— Tonho...
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*Autor do blog Sonetando. É jornalista em Porto Velho, Rondônia, desde 2007. Em 2010, passou a integrar a equipe do jornal eletrônico Rondônia Dinâmica onde está até hoje atuando em várias frentes. Entre os principais encargos, edita a coluna 'Visão Periférica' e é responsável pela seção RD Entrevista. 

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Porto Velho, RO – 29/06/2017

Vinicius Canova


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