CONTO: A COLONOSCOPIA DO AMOR ♥
Por
Vinicius Canova
Às 13h28, precisamente, Tobias irrompeu raivoso e apressado a sala de exames procurando Déborah, sua namorada, que havia se atrasado e muito para o horário de almoço combinado naquela ensolarada quinta-feira.
—
Dá pra gente ir agora, Déb... — antes que pudesse encerrar a frase uma gorfada tomou-lhe as cordas vocais
obrigando-o a desistir de falar para ter forças e segurar o vômito que subia em
fluxo intenso pelo esôfago desavisado.
O
rapaz não estava preparado para o que vira nem para o odor que sentira: Debbie
estava numa sala preenchida por um cheiro nauseante de flatulência de gente
velha. Acredite: onze em cada dez profissionais que trabalham com saúde
garantem que quem já passou dos sessenta solta os piores e mais impregnantes
peidos da face da Terra.
Mas
a atmosfera de câmara mortuária escancarada não era tudo, apenas pequena
composição interativa de um cenário ainda mais catastrófico.
Dona Josefa, uma
viúva de 76 anos, estava deitada e desmaiada à base de Propofol na cama onde
eram realizadas as colonoscopias. De ladinho, sonhando como se fosse a própria
Bela Adormecida, exceto pelo fato de que a personagem infantil não tinha um
metro e setenta de cano recém-saído de seu reto escorregando cada vez mais para
fora nas mãos suaves da delicada Déborah.
Restos
de excremento voavam para todos os cantos do perímetro apertadíssimo porque a
cada milímetro de cano retirado um novo peido formava-se na velocidade da luz
no ventre da senhora risonha, carregadíssima no intestino por ignorar o jejum
exigido pela equipe. Suas feições exortavam os mesmos trejeitos travessos das
crianças que aprontam e sentem prazer com isso. Seu subconsciente denunciava as
traquinagens expondo como era divertido lançar gases e cocô nos outros tal qual
um babuíno revoltado que só se aquieta quando atinge o alvo.
Com
a propulsão do gás, a sala de um branco exuberante tornou-se uma tela zerada
para pinturas consideradas como arte moderna, onde basta espirrar tinta e dizer
que o resultado é uma interpretação dos novos tempos para o trabalho de
Michelangelo realizado na Capela Sistina, por exemplo. E assim como a arte
moderna, aquilo tudo viria a se acabar em merda.
Tobias
estava paralisado. Seu organismo tentava abstrair as causas do enjoo, mas era
tarde demais para se manter em pé. Adormeceu devagar pouco depois de avançar
trôpego na direção de Debbie a fim de tirar satisfação sobre o atraso, embora a
resposta fosse óbvia e ele próprio já soubesse a razão.
Mesmo
atordoado, e percebendo o exagero na forma de cobrança, naquela invasão desproporcional
e descabida, era tarde demais quando resolvera dar um beijo no rosto da
namorada (ainda manipulando o cano no cu da velha). Quando recuperou um pouco
da consciência sobre si e também do espaço em que se encontrava, o jovem foi a
nocaute outra vez pouco depois do sopro de plenitude.
Sua
cabeça girava rapidamente e, de repente, sentiu que ouvia o trecho da Nona
Sinfonia de Beethoven conhecida como Ode
to Joy enquanto o ambiente se retorcia em câmera lenta antes que apagasse
definitivamente.
Parecia
clarividência.
Enquanto
ouvia Beethoven crescendo em fade in, o que captava pelos glóbulos oculares
sumia em fade out e Tobias se
observava como espectador em todos os lugares naquela pequena saleta.
Pingos
de fezes jaziam nas mangas do jaleco da amada; no alface sobressalente que
escapava às bordas do sanduíche que esperava o auxiliar de enfermagem; nos
cabelos do médico cansado que dormia na sala após plantão recém-tirado em
hospital público, e ainda no chão verde-limão há pouco encerado, limpíssimo e
justamente onde seu corpo cairia inerte daqui a pouco. Não antes de Déborah
espirrar.
Mesmo
profissional e atenta, a enfermeira acabou se descuidando com a aproximação do
namorado desvairado e se esqueceu de monitorar os efeitos que os produtos de
limpeza lhe causavam em termos de alergia. Nada que tampar as narinas com a
junção do polegar e do indicador formando uma espécie de prendedor não
resolvesse.
Distraída, vacilou e deixou a ventilação escapar. Com ela, os
impulsos involuntários.
Debs
acabou enfiando de volta pelo menos cinco centímetros de cano no reto de
Josefa, que foi da felicidade marota ao êxtase total, como naqueles 2,5
segundos que uma Ferrari leva para ir de zero a cem km/h.
Com
o empuxo, o urro:
—
Ai, Joaquim! Que delícia, só mais um pouquinho, vai...
Déborah
teve um acesso de riso desenfreado e em profusão por se dar conta de que em
suas mãos estava Joaquim, o falecido. Ou o falo do falecido, se assim o
quisesse.
Ria
que doía e não sabia o que fazer: se tentava frear os movimentos espontâneos
causados pelas gargalhadas, ou se ajudava o namorado desmaiando ainda em câmera
lenta. Sem controle sobre a mão, o cano fazia piruetas na retaguarda da véia que, pelo menos de vista,
aparentava usufruir do melhor momento dos últimos 20 anos de sua vida.
Quando
Debbie recobrou controle total sobre a situação, reiniciou a retirada de
"Joaquim".
Josefa,
que enrijeceu toda cintura pélvica para receber a investida do
"ex-marido" terminou por soltar o esfíncter regressando ao estado escatológico
do símio brincalhão.
Tobias,
que vira tudo isso acontecer enquanto caia num voo lento rumo ao solo, apagou
de vez porque não aguentou o derradeiro deslanchar da paciente.
Agora
até pedaços mal digeridos de milho e resquícios do feijão de anteontem faziam
parte da hecatombe marrom da arte moderna feita por um pincel que era, de fato
e tão somente, um cu singelo e puro. Bem... talvez não tão puro.
Não
havia mais consultório. Déborah sumira. A velha desaparecera. Ele reconhecia o
cenário. Era de um filme antigo.
— Kubrick! – pensou.
— Mas que porra é
e... —
e de novo, antes de concluir a segunda frase que tentou formular sem sucesso
neste conto, Tobias foi silenciado pela enxurrada torrencial que escapava dos
elevadores do Hotel Overlook, em O
Iluminado. Mas em vez de sangue, um jorro de bosta fétida e cremosa
permeava todos os sulcos desocupados nas cavidades mais íntimas de sua mente.
Então,
atordoado, acordou em casa, cuidado pela amada.
—
O que você foi fazer lá no consultório? E que diabos aconteceu contigo? — questionou
Debbie, preocupada.
—
Nada, amor da minha vida. Eu só queria ver você. Estava com saudades, obrigado
por cuidar de mim! — respondeu.
Tobias
nunca mais reclamaria dos atrasos.
—
Uma pessoa muito especial veio ver você. Entre, Dona Josefa...
O
corpo semidesligado de Tobias reacendeu na hora, todo entumecido de aflição.
Direcionou os olhos arregalados àquela senhora de bochechas ruborizadas e ancas
largas, larguíssimas, que jamais esqueceria.
—
Eu trouxe biscoi...
Pumft!
Um
ligeiro vento quente escapou-lhe às flácidas ventoinhas enquanto a corpulenta
mulher de sorriso largo se aproximava com a bandeja ao leito residencial de
Tobby.
—
Ah, meu Deus, que vergonha...
E
o grito ecoou pela casa:
—
NÃÃÃÃÃÃÃÃOOO!!!!
_______________
10/11/2017
Escrito
no celular pelo interno do leito 16, enfermaria 67, do Hospital de Base, em
Porto Velho, Rondônia.
viniciuscanova89@gmail.com



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